Força e competência no feminino

Reportagem

07-09-2023

# tags: Eventos , Audiovisuais

Há uma forte representação feminina na indústria dos eventos, mas há segmentos dominados pelos homens – estruturas, som e luz são exemplos disso.

O cenário está a mudar aos poucos, mas há ainda desafios para quem, em minoria, opera nessas profissões.

Alexandra Prezado, Inês Argêncio e Vanessa Carvalho são três mulheres que trabalham nos segmentos mais associados aos homens, talvez pelo esforço físico ou pelos hábitos já estabelecidos. Mas não estarão as mulheres à altura dessas funções mais técnicas? E que toque podem deixar as mulheres nesses universos masculinos? Foi o que a Event Point tentou perceber.

“Acho que os principais desafios são também as razões que explicam não existirem mais mulheres a integrar as equipas técnicas no terreno”, afirma Inês Argêncio, que destaca três fatores. Um deles é a carga e a irregularidade de horários, “um desafio para qualquer trabalhador, pois exige a ausência em trabalho por muitas horas e até dias, assim como horários irregulares e, muitas vezes, em período noturno” – tal pode ter “implicações familiares e sociais” que, especialmente para as mulheres, podem ser “difíceis de gerir”.

A profissional do segmento de estruturas realça também o trabalho físico pesado. “É importante para uma mulher, tal como qualquer pessoa de estatura menor, ser perspicaz em identificar como pode ajudar de forma segura e adaptada às suas capacidades, quando se praticam tarefas que exigem mais força, mais altura, mais alcance. É importante cada um conhecer os seus limites e pedir ajuda; por isso, trabalhamos em equipas”, sublinha Inês Argêncio, que reconhece que a desenvoltura física é “um requerimento em determinadas tarefas” e que, no capítulo da robustez, a maioria dos homens “tem biologicamente um avanço em relação à maioria das mulheres”. No seu caso, como apreciadora e praticante de desporto, gosta que o seu trabalho envolva tarefas físicas. Mais, “o desafio de arranjar estratégias para executar as mesmas, com menos esforço, torna-se um exercício mental diário interessante.”

Inês Argêncio enumera ainda o ambiente de trabalho essencialmente masculino, que poderá ser interpretado “como desajustado para a presença de uma mulher: do que se fala, em que tom se fala e com que linguagem”. E o desafio está, explica, em, “como mulher, marcar o suficiente a sua presença de forma a ‘suavizar’ o ambiente e se sentir sempre respeitada; mas, ao mesmo tempo, estar suficientemente integrada no companheirismo entre colegas para que toda a equipa se sinta à vontade”.

No entender de Vanessa Carvalho, a área da iluminação está a ficar mais “equilibrada”.

“Mas, mesmo assim, os homens ainda veem as mulheres desta área como frágeis”, comenta, esclarecendo que “a pior parte é quando estamos a dar um conselho e eles não dão ouvidos, porque ainda é difícil ouvir a nossa opinião”.

Também Alexandra Prezado indica que “a maior dificuldade é a de duvidarem inicialmente das nossas capacidades e, não raras as vezes, não nos darem funções de maior responsabilidade”. De acordo com a técnica de som, “existe ainda uma certa reticência geral em Portugal sobre mulheres nesta área. E existe até pelo menos uma empresa que só contrata mulheres se não houver mesmo outra alternativa”.

Aos poucos, vão aparecendo mais mulheres”

Alexandra Prezado e Vanessa Carvalho atuam nas áreas de som e luz, respetivamente, como freelancers. Será que, nesta condição, as oportunidades de trabalho são iguais? Vanessa Carvalho responde que sim. “Não sinto que tenho menos trabalho por ser mulher”, diz, adiantando que isso até pode ser uma vantagem, já que há muitos homens na corrida e as mulheres podem sempre destacar-se. Por seu lado, Alexandra Prezado considera que as oportunidades acabam por ser iguais “quando já se é conhecido no meio”. Para as mulheres, “pode ser um processo talvez mais demorado, mas acredito que também parte de cada um fazer o seu caminho”.

Assim, “aos poucos, vão aparecendo mais mulheres na área. Talvez no som ao vivo ainda seja a área com menos mulheres, mas acredito que, em poucos anos, já não se note tanto essa diferença”, sustenta Alexandra Prezado. No seu percurso profissional, e porque é freelancer, a situação de ser a única mulher em funções técnicas pode variar. “Em festivais já se encontram bastantes mulheres nas diferentes funções e existem algumas até como stagehands”, reconhece.

Também na área da iluminação, já há algumas mulheres a desempenhar funções. “O que é ótimo. Espero que continue”, avança Vanessa Carvalho. Nos locais onde trabalha, já se vai cruzando com cada vez mais mulheres nas equipas, apesar de não ser algo habitual.

No que toca às estruturas, e embora esteja há pouco tempo neste segmento, Inês Argêncio já se apercebeu de que, a nível nacional, não são muitas as mulheres envolvidas no trabalho técnico.

“Somos ainda poucas, principalmente comparado com o panorama internacional, em que o envolvimento das mulheres nesta área é muito mais relevante”, aponta.

Inês Argêncio é a única mulher operacional a integrar a sua equipa na Europalco. Frisa a simpatia e a disponibilidade com que os seus colegas a tratam, mas a profissional quer acreditar “que todas estas ‘vantagens’ acontecem por ser simpática e boa colega, não por ser mulher”. As duas únicas vantagens efetivas são o facto de se conseguir distinguir entre os seus colegas e todos saberem quem é; e também de toda a equipa saber de quem são “as ferramentas marcadas com fita cor-de-rosa”. Como desvantagem aponta a falta de cumplicidade feminina que faz falta em certas situações.

Até podemos ser flores, mas somos flores de luta”

Apesar de ainda haver muito preconceito, Alexandra Prezado não considera que “as mulheres e os homens sejam diferentes ou que possam acrescentar algo de novo ou de melhor à profissão. Somos, sim, todos diferentes enquanto pessoas e, como tal, individualmente é que temos algo a acrescentar, dependendo das características de cada um de nós”, sustenta.

Para Vanessa Carvalho, nestas profissões mais masculinas, as mulheres podem reforçar pela positiva os aspetos de “organização, respeito e cuidado”, mesmo que estes já existam no meio.

Por seu lado, Inês Argêncio crê que “as mulheres podem trazer aquilo em que são diferentes”. E explica: “A sua sensibilidade traz uma perspetiva completamente diferente, por isso, é muito importante e extremamente útil a perspetiva feminina; torna mais completo qualquer processo de trabalho”. Além disso, as mulheres cuidam dos outros e preocupam-se com o bem-estar. Mas, acima de tudo, as mulheres conseguem “dissolver um pouco o ambiente carregado de testosterona que se vive no terreno, bastando para isso apenas estar presente”.

De acordo com Inês Argêncio, “trabalhar na produção de eventos é uma vida desafiante” – não uma profissão, mas uma vida. Mas é, sem dúvida, atrativa.

E é, por isso, que “só existe uma forma de se fazer este trabalho: adorar o que se faz”.

A outras mulheres que queiram explorar o mercado de trabalho e arriscar o segmento das estruturas, a profissional da Europalco deixa um conselho: “Manter presente que todos somos diferentes e, por isso, todos temos diferentes contributos a dar para atingir os objetivos. Se enveredar por esta profissão implicar trabalhar numa equipa com poucas ou mais nenhuma mulher, que isso não seja um fator intimidante. Se formos confiantes e mostrarmos iniciativa, dentro das nossas competências e capacidades, seremos sempre uma mais-valia em qualquer área de trabalho”, frisa.

Alexandra Prezado refere que, “como em qualquer situação, não desistam!”. E acrescenta: “Se gostam realmente da área, tenham em mente que não vai ser fácil. Noites mal dormidas, muitas horas de trabalho e muito tempo fora de casa. Claro que depende muito das opções que tomem, mas, como freelancer, tenham isto em mente. No entanto, não se menosprezem nem permitam que não vos respeitem”, sublinha.

Vanessa Carvalho deixa força e garra. E deixa também o conselho de “mostrar aos homens que não temos medo de trabalhar e que também somos competentes – que até podemos ser flores, mas somos flores de luta”, conclui.

Alexandra Prezado: No mundo da música desde muito cedo

Atualmente, Alexandra Prezado é técnica de som freelancer. O caminho para aqui chegar teve início aos quatro anos de idade, quando começou a estudar música. Dois anos mais tarde, ingressou no conservatório de música, em Braga. No Ensino Secundário, “percebi que tinha de continuar na área da música, mas, na altura, ainda não sabia muito bem a fazer o quê”, refere. Por sugestão do professor de Composição, Alexandra Prezado, acabou por fazer a licenciatura em Produção e Tecnologias da Música, na ESMAE – Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, no Porto; “o que me levou ao que faço hoje em dia”.


Inês Argêncio: Da enfermagem às estruturas

“Muito antes de trabalhar na área dos eventos, já cultivava um fascínio e curiosidade especial pelo mundo da produção, ainda na perspetiva do público. Sempre fui cliente entusiasta de concertos e festivais”, conta Inês Argêncio, que chegou profissionalmente à indústria dos eventos há cerca de seis anos. Licenciada em Enfermagem – “profissão que exerci durante dez anos” –, Inês Argêncio trabalhou na produção do Boom Festival, como enfermeira de apoio às equipas de montagem no terreno. “Entrei desta forma para o mundo dos eventos.” Com o passar das edições do festival, interessou-se cada vez mais pelo trabalho operacional de montagem. Em 2022, fez uma formação em Trabalhos em Altura e Rigging e, um ano depois, fez uma candidatura espontânea a técnica de estruturas na Europalco. “Receberam-me muito bem, com interesse no meu perfil, apesar da minha limitada e recentemente adquirida experiência na área. Está a ser uma experiência fantástica de crescimento e realização profissional”, destaca.


Vanessa Carvalho: Nos palcos, viu a luz

No 10º ano de escolaridade, Vanessa Carvalho estava a tirar um curso profissional de artes do espetáculo, na vertente de atriz. “Foi lá que comecei a ganhar gosto pela luz”, revela a técnica de iluminação. Depois de conversar com os professores, foram escolhidos estágios, onde Vanessa Carvalho sentiu que poderia evoluir e aprofundar mais os seus conhecimentos da área. Quando terminou os estudos, foi trabalhar para uma empresa de audiovisuais. “E, então, foi aí que realmente evoluí muito, cresci e ganhei mais gosto pelo que faço”, salienta. Hoje, Vanessa Carvalho é técnica de iluminação freelancer.


© Maria João Leite Redação