“Compromisso, pessoas, processos”
23-01-2023
# tags: Desporto , Eventos , Qatar
Entrevista a Paulo César Silva, que no Mundial de Futebol do Qatar foi supervisor no controlo de acessos a quatro estádios e gestor dos bilhetes que estavam atribuídos ao país anfitrião.
Não foi a primeira vez que Paulo César Silva trabalhou num megaevento além-fronteiras. A sua motivação passa por “aprender mais e diferente”, pelo que vai somando experiências e aprendizagens. À Event Point conta como decorreu esta jornada profissional, os desafios e o que pensa terem sido os principais fatores de sucesso do evento.
Que tipo de trabalho realizou no Mundial de Futebol do Qatar?
As minhas funções abrangiam as seguintes responsabilidades no âmbito da contratação pelo host country, ou seja, o Governo do Emirado do Qatar: geria a comunicação e os timelines de prontidão do sistema eletrónico de acesso (vulgo torniquetes) a quatro estádios do Mundial, incluindo o da final, exercendo o cargo de electronic access control supervisor. Por outro lado, era um dos gestores de ticketing (bilhética) da quota que o país organizador tinha direito, no âmbito dos acordos com a FIFA para organização do Mundial no Qatar. Esta responsabilidade assentava, sobretudo, na gestão de todo o processo de reserva, tratamento de dados, impressão, controlo e distribuição de 60.000 bilhetes para os diversos stakeholders do emirado, bem como stakeholders da organização interna (departamentos e staff).
Pode partilhar connosco como era um dia seu no Qatar?
Posso dividir em duas fases: durante os meses de agosto, setembro e outubro, o meu dia era passado essencialmente a recolher todos os dados para avaliação e monitorização de todos os trabalhos a decorrer no meu cluster de quatro estádios; tratamento desses mesmos dados e reuniões com FIFA e fornecedores para discussão da evolução; muitas deslocações aos estádios para testes e resolução de problemas com equipas especializadas na infraestrutura e conectividade (interface com sistemas FIFA e estádio). A partir de novembro, e com a entrega da parte infraestrutural à FIFA, o nosso foco passou a ser a operacionalização de toda a quota de bilhética contratada com o país anfitrião, o que obrigava, essencialmente, a uma presença mais assídua nos escritórios centrais, uma vez que todas as operações se fixavam no Main Ticketing Center de Doha. Durante a realização do Mundial, foram cerca de 28 dias de operações non-stop, com cerca de 10-12 horas de trabalho diário para responder às diversas solicitações em função dos diversos requisitos durante o evento.
Como surgiu a oportunidade de trabalhar no evento?
Tendo já alguma experiência de participação em megaeventos – sendo, em concreto, o meu segundo Campeonato do Mundo, após o Rússia 2018 –, a assiduidade e visibilidade decorrente destas presenças contribuiu para a construção de uma rede de contactos e network profissional. Diria que, sem dispensar as habituais formalidades de candidatura e entrevista profissional, o facto de possuirmos expertise em determinadas áreas capacita-nos para responder em curto espaço de tempo às necessidades operacionais numa organização de grande dimensão. Neste caso específico, tendo tido a oportunidade de colaborar com a FIFA e o Governo do Qatar, optei pela segunda via, após realização de entrevistas de recrutamento.
Como foi a experiência em termos profissionais? E quais foram os maiores ensinamentos profissionais que retirou desta experiência?
Todos os eventos, por maior ou menor dimensão que tenham, deixam-nos marcas e lições de aprendizagem. No caso específico do Mundial do Qatar, a maior lição profissional que posso retirar é que, apesar de estarmos inseridos numa organização com enormes capacidades financeiras, sem o fator humano o sucesso do evento seria praticamente impossível. Neste domínio, a capacidade de, num curto espaço de tempo, poder ter a oportunidade de ‘trazer para a mesma página’ pessoas de 20 nacionalidades diferentes, com backgrounds culturais distintos e diferentes mindsets profissionais, diria que este foi o meu maior reconhecimento profissional.
E em termos pessoais? Como se adaptou às diferenças culturais?
Nesse aspeto, foi muito fácil. A experiência de trabalho no Médio Oriente, decorrente da minha participação na Expo 2020 no Dubai, facilitou imenso a adaptação à cidade, quer a nível cultural, quer a nível social e de logística. Diria mesmo que a parte mais complicada foi mesmo lidar com o calor excessivo dos meses de agosto e setembro, cujas temperaturas podem facilmente chegar aos 50 graus durante o dia. Mas, mesmo nesse aspeto meteorológico, a minha adaptação acabou gradualmente por se concretizar em duas semanas.
Essas diferenças culturais interferiram de alguma forma com o seu trabalho?
Absolutamente nada. Aliás, umas das faces mais atraentes neste tipo de eventos é mesmo a diversidade cultural e social que encontramos transversalmente a todas as áreas funcionais da organização. Em ‘modo de trabalho’ todos fazem por respeitar a regra básica dos eventos: todos somos um. Posso mesmo dizer que, pessoalmente, acaba por ser mais enriquecedor toda esta miríade de diferentes nacionalidades e credos e verificar in loco que, apesar de todas as diferenças culturais e sociais, o objetivo de todos é apenas o de entregar o melhor evento possível.
Quais os principais desafios? E como foram contornados?
A nível pessoal foi mesmo a adaptação ao clima nas primeiras duas semanas, aliada às necessárias, mas aborrecidas, tarefas burocráticas ao nível da logística/alojamento. Para aqueles que desconhecem, as obrigatoriedades legais de mudança de país (mesmo que temporária) podem ser um processo um pouco confuso e mesmo saturante ao nível dos diversos passos a tomar para que estejamos aptos a trabalhar num país estrangeiro e que possui legislação e ritos diferentes das normas ocidentais. O segredo para contornar foi, essencialmente, estudar um pouco a sociedade antes de viajar: quais as normas vigentes, qual o custo de vida, quais as obrigatoriedades legais e burocráticas, pontos de interesse cultural e turístico, etc. A nível profissional, o maior desafio foi acompanhar o ritmo de operações no último mês de evento, cuja sucessão de jogos nos obrigava a uma resiliência acima da média. Este último foi contornado muito facilmente com a entrega e o profissionalismo a que nos obrigam estes eventos de grande dimensão.
O que o motiva num evento desta dimensão?
Sempre aprender mais e diferente. Aquilo que nos recompensa, para além do aspeto monetário, é a aprendizagem que retiramos de todo o processo organizativo em todas as suas vertentes. Profissional e pessoal. Trabalhar em equipas com pessoas cujos métodos de trabalho sejam diferentes mas que transportem valor é, sem dúvida, uma remuneração que não tem preço. Esse valor acompanhar-nos-á nos futuros eventos e será, sem dúvida alguma, um fator importantíssimo na altura de avaliação de uma candidatura posterior a eventos futuros.
O evento foi considerado um sucesso em termos de organização. Quais as razões desse sucesso?
Compromisso, pessoas, processos. Acho que estes foram os fatores chave para o sucesso do evento. Mentiria se dissesse que o dinheiro não foi importante. Obviamente que o foi e será sempre, tanto mais que falamos de um país que investiu mais de 200.000 milhões de euros em infraestruturas desportivas e sociais de suporte à organização do Mundial. Contudo, nunca é demais realçar que, apesar de haver muita disponibilidade financeira, se não houvesse um compromisso assente em processos e, sobretudo, se não houvesse pessoas capazes de desenhar esses métodos e de os colocar em operação, jamais seria possível levar em diante um projeto desta envergadura, num país que geograficamente é do tamanho do distrito de Beja e cuja cidade conseguiu organizar um evento com 32 equipas num raio de 132 quilómetros quadrados.
Como é que encara as críticas/polémicas que o Mundial enfrentou? Sentiu isso quando estava lá a trabalhar?
Pessoalmente, não influenciou em nada a qualidade do nosso trabalho e os objetivos propostos. Não nego que o foco dirigido pela imprensa internacional a poucas semanas do início do evento, sobre a temática da violação dos direitos humanos dos trabalhadores emigrantes, bem como as diversas notícias sobre as limitações de liberdade pessoal durante o evento, vieram ensombrar a agenda mediática. Contudo, nunca experienciei qualquer problema a este nível, quer a nível profissional, quer essencialmente pessoal. Não nego também que haja casos em que se possam tipificar alguns exemplos negativos de más práticas, mas, sejamos honestos e muito claros, não existem desses casos em todos os países do mundo, começando aqui pelo nosso? Em resumo, a partir do momento em que a bola passou a rolar na relva, quantas vezes vimos a imprensa a reiterar estes problemas? Não os negando, prefiro valorizar os esforços que foram feitos para os mitigar.
Tem algum momento que vai guardar para sempre na memória e que possa partilhar connosco?
Como em todos os projetos de grande dimensão, a riqueza e diversidade cultural associada a estes megaeventos são as nossas melhores lembranças. As amizades que construímos e que levamos muitas vezes para outros projetos, a incorporação do conhecimento de novas práticas e métodos aliados às novas formas de organização, novas formas de liderança e, sobretudo, a sensação e satisfação do dever cumprido são sempre as melhores lembranças que carregamos para a nossa vida futura.
© Maria João Leite Redação
Jornalista
© Cláudia Coutinho de Sousa Redação
Editora