Festivais e Peregrinação

Opinião

06-11-2024

# tags: Festivais , Eventos

Elementos rituais e desafios em comum. Jornadas liminares de devoção espiritual e celebração, motivadas entre as provações espirituais e a busca de prazer.

Peregrinação é uma viagem, por definição, e geralmente implica uma visita a um sítio sagrado e a um evento especial.

Estão identificadas três partes estruturais do espaço sagrado: uma origem marcada, um caminho, e um centro sagrado (ou destino) no fim do caminho.

Eventos especiais (nomeadamente peregrinações festivais envolvendo expressões folclóricas) em centros de peregrinação, com multidões diversificadas, resultam em experiências partilhadas, mas também têm o potencial para interpretações equivocadas.

“Um santuário de peregrinação pode ou não ser uma atração turística religiosa em virtude dos seus dotes históricos, artísticos ou arquitetónicos. (...) Além disso, um santuário pode celebrar peregrinações turísticas e festivais religiosos no local. (...) os turistas interessados em festivais coloridos têm maior probabilidade de encontrar o que buscam entre os muitos eventos que não são considerados peregrinações e não são realizados em santuários de peregrinação” (Nolan e Nolan, 1992, pp. 69-70).

A viagem para festivais é como uma peregrinação que toca espaços liminares, ilumina ritos de passagem, e age como uma fonte de realização espiritual para os participantes. As raves, como exemplo, são comparadas a rituais de cura espiritual em subculturas americanas e sociedades indígenas.

Os Huichol utilizam a peregrinação para alcançar a unidade, a comunidade e transformações espirituais, sendo baseada numa cosmovisão indígena com uma cosmologia das forças espirituais realizadas no mundo, pelo que difere da peregrinação para festivais no sentido em que, nesta, há diversos destinos emissores e os participantes têm diferentes conexões à terra, às forças espirituais e aos rituais de dança de música, portanto, com um diferente significado da peregrinação sagrada.

A peregrinação dos participantes do Boom Festival é planeada com meses de antecedência e inclui uma longa e quente jornada de provações e desafios, em que a entrada no festival é considerada um desconforto notório para os viajantes, com filas que duram dias até chegarem ao festival. Simultaneamente, há um clima exultante típico daqueles que chegam ao festival, que vai crescendo na jornada até à meta do peregrino, o “centro lá fora”, a vibração de referência no calendário psicadélico.

Se no Boom há um desconforto, no Burning Man a peregrinação decorre num local ainda mais estéril, ventoso e empoeirado, em que os participantes têm de levar os seus próprios mantimentos e abrigo, pois não são disponibilizados chuveiros, o dinheiro só deve ser usado para gelo e café; e o único meio de transporte é a pé, de bicicleta ou “carro de arte” lento, sendo que se demora cerca de 10 horas a sair do festival em direção à via pública mais próxima. A localização espacial do Burning Man foi colocada como outro indicador de significado espiritual através da sua implicação de provação.

A aplicabilidade do conceito de peregrinação ritual de Turner no Burning Man pode, eventualmente, ser rejeitada, por ser um ambiente familiar e a provação experimentada ser limitada, pelo que o festival é um evento luxuriante e decadente.

Apesar disso, a provação é relativa, pois, por um lado, para alguns Burners é uma experiência de perigo real num ambiente natural desafiador, enquanto, por outro lado, demasiado foco na provação desconsideraria as motivações de procura de prazer, considerando que as motivações espirituais são provavelmente suplantadas pelas hedonísticas.

 

João Carvalho
Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos (Beach Break®).

 

Bibliografia:

BOTTORFF, David Lane (2015) “Emerging Influence of Transmodernism and Transpersonal Psychology Reflected in Rising Popularity of Transformational Festivals”, Journal of Spirituality in Mental Health, 17:1, pp.50-74.

GETZ, Donald e PAGE, Stephen G. (2016) “Progress and prospects for event tourism research”, Tourism Management, 52, pp.593-631.

MATTHEWS, Doug (2016) Special Event Production: The Process (2ª ed.), Oxon – Nova Iorque: Routledge.

MOHR, Kelci Lyn (2017) Dancing through Transformational Music Festivals: Playing with Leisure and Art, Dissertação de Mestrado, Alberta: University of Alberta.

NOLAN, Mary Lee e NOLAN, Sidney (1992) “Religious Sites as Tourism Attractions In Europe”, Annals of Tourism Research, 19:1, pp.68-78.

JOHN, Graham e BALDINI, Chiara (2012) “Dancing at the Crossroads of Consciousness: Techno-Mysticism, Visionary Arts and Portugal’s Boom Festival”, In Cusack, Carole M. e Norman, Alex (eds.) Handbook of New Religions and Cultural Production, Brill, pp.521–552.

YEGANEGY, Roxanne (2012) The Politics of Participation: Burning Man and British Festival Culture, Tese de Doutoramento, Leeds: University of Leeds.