Vestuário e comunicação em tempo de guerra

Opinião

09-06-2022

# tags: Protocolo

O vestuário fala. Fala por quem o usa. Ou, como dizia Umberto Eco, o hábito fala pelo monge. Por isso, a roupa há-de ser escolhida e usada para significar em cada momento, em cada lugar, em cada situação, a mensagem que o seu portador pretende transmitir.

Os militares, por exemplo, têm uniformes. E a primeira mensagem que transmitem é o uso desse uniforme. Mas os uniformes variam conforme as ocasiões. Em princípio, há três tipos de uniformes: os de cerimónia (chamados grandes uniformes), os de representação ou serviço, e os de combate ou campanha. E cada um destes uniformes, ao ser usado, dá indicações.

O seu uso não é indiscriminado, antes está claramente regulamentado. O grande uniforme, por exemplo, usa-se na receção, apresentação e cumprimentos a chefes de Estado, soberanos ou príncipes estrangeiros, e embaixadores extraordinários; em jantares e bailes a que assistam chefes de Estado, soberanos ou príncipes estrangeiros; em funerais de chefes de Estado, soberanos ou príncipes estrangeiros ou embaixadores extraordinários; e em grandes solenidades, récitas de gala, com a presença de chefes de Estado, soberanos ou príncipes estrangeiros; em concorrência com a casaca civil ou o vestido comprido.

O uniforme de campanha, por seu turno, é o que deve ser envergado em atividades operacionais, nomeadamente em combate. É o chamado «camuflado», o único uniforme militar que é usado pelos três ramos das Forças Armadas. E foi esse uniforme o que o almirante Gouveia e Melo decidiu passar a usar depois de ser investido no comando da Task Force para o Plano de Vacinação contra a covid-19 em Portugal.

Escolhendo esse uniforme, o almirante tornou bem claro, sem precisar de fazer muitos discursos, que se tratava de travar uma guerra e que era preciso combatê-la de acordo com as ordens e os planos de quem tinha a responsabilidade do comando (que é como as guerras têm de ser travadas).

Um outro episódio que ilustra o poder comunicacional do vestuário passou‑se em Reykjavik (ou Reiquiavique), na cimeira que reuniu, entre 11 e 12 de outubro de 1986, o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, com o líder da União Soviética, Mikhail Gorbachov. Apesar das temperaturas gélidas que se faziam sentir, o chefe de Estado norte‑americano partiu ao encontro do seu interlocutor de “corpinho bem feito”, vestindo apenas o fato completo, e cumprimentou com um largo sorriso o dirigente russo, que estava metido dentro de um grande sobretudo, tendo um cachecol ao pescoço e um chapéu na cabeça. Gorbachov, com menos vinte anos do que Reagan, percebeu logo (segundo depois escreveu nas suas memórias) que tinha perdido a guerra da imagem e da comunicação: Ronald Reagan, respirando saúde, aparentava energia e confiança, enquanto o pai da “perestroika” parecia um homem envelhecido e antiquado.

No horror inimaginável da guerra que a Rússia faz à Ucrânia, o vestuário continua a falar. A roupa com que o presidente Volodomyr Zelensky se apresenta ao seu povo – e ao mundo todo – faz dele um soldado igual aos seus compatriotas, destemido e determinado, pronto para a luta, despojado de símbolos de poder ou prestígio. No despojamento daquele vestuário, no recurso ao verde militar, está inscrita a mensagem essencial – travar (e ganhar) a guerra. É o contrário do outro Vladimir, o Putin. O que não surpreende. Já Umberto Eco dizia que “a linguagem do vestuário, tal como a linguagem verbal, não serve apenas para transmitir certos significados, mediante certas formas significativas. Serve também para identificar posições ideológicas, segundo os significados transmitidos e as formas significativas que foram escolhidas para transmitir”.

© Isabel Amaral Opinião

Presidente da APorEP - Associação Portuguesa de Estudos de Protocolo

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