“O medo é apenas um sentimento que nos adormece, que nos limita”

25-11-2020

É fundamental perder o medo e voltar a fazer eventos e é a altura de nos focarmos nos programas de colaboração competitiva.

São estas duas das mensagens mais fortes desta grande entrevista, em que revisitamos a carreira de uma das referências nacionais em termos de organização de congressos: Pedro Cardoso, da The House of Events.

Como é que chegou ao setor do turismo? Foi um acaso ou um objetivo desde sempre?

Acho que não foi um acaso. Há sempre mais do que uma explicação para chegarmos até onde estamos. No meu caso, foi um conjunto de circunstâncias que, no fundo, acabaram por criar o meio ambiente propício ao meu envolvimento. Diria que isto começa desde muito cedo, com nove ou dez anos. Os meus principais amigos eram americanos, a minha primeira relação com o mundo exterior começou muito cedo a fazer‑se logo em inglês, com hábitos de vida que tinham muito mais a ver com culturas estrangeiras do que se calhar com a nossa. Com dez anos eu jogava futebol americano, basebol, basquetebol. Depois isso, ao longo do tempo, acabou naturalmente por evoluir, fruto também do facto de ter nascido numa estância. A Figueira da Foz era talvez uma das principais estâncias balneares em Portugal nos anos 60, antes do Mediterrâneo se ter tornado tão famoso. Daí a evolução natural para um curso onde as línguas acabaram por ser determinantes. Depois o facto de ter saído para viver no estrangeiro com 17 anos. Vivi e trabalhei na Suíça durante dois anos e isso foi, no fundo, o pontapé de saída para voltar e ingressar na escola hoteleira. A partir daí, as coisas evoluíram de uma forma natural: escola hoteleira, hotéis, basicamente aqui no norte. O primeiro hotel onde estive foi em Ofir, depois disso no Sheraton Porto durante quase dez anos, em que a minha função foi feita em praticamente todos os departamentos e chefias de departamento.

Seguiu‑se o projeto do Convention Bureau do Porto, que durou cerca de sete anos. No fundo, fui um dos cofundadores, dos mentores, dos primeiros projetos de colaboração competitiva que se desenvolveram. Nós já estávamos a passar por um período de crise económica como estamos a passar hoje com a pandemia. Na altura, as circunstâncias eram idênticas e isso permitiu que as pessoas se reunissem à volta de um objetivo comum e foi dessa forma que foi possível criar as bases do que viria a ser o futuro Convention Bureau. Depois desses sete anos, achei que estava na altura de poder também correr algum risco e criar um projeto próprio. E, portanto, desde 2001 até agora, foram sucessivos anos de envolvimento nesta área de turismo de negócios, e numa outra, que foi uma joint‑venture até 2009, que foi a área do catering. As coisas no fundo acabam por se encadear naturalmente umas nas outras, têm um percurso, uma explicação.

Neste caminho, consegue identificar algumas pessoas que o tenham inspirado?

Desde logo alguns dos meus amigos de infância, nomeadamente esses com quem passei uma parte significativa do meu tempo; depois disso, durante o período em que estive no estrangeiro, pessoas com quem mantinha uma relação relativamente próxima. Recordo um Chef de cozinha com quem trabalhei como ajudante de cozinha, durante três meses, numa estância de ski, e que foi um verdadeiro mentor. Na escola hoteleira alguns dos meus mestres e professores, e já numa fase de estágio houve alguns diretores de hotel com quem tive oportunidade de trabalhar, cada um com um estilo muito próprio, mas que de alguma forma me trouxeram a inspiração, quer pela exigência, quer pelo sentido de organização, quer pelo planeamento.

Recordo, por exemplo, um diretor de hotel com quem trabalhei vários anos, no Sheraton, com quem estive há dois ou três anos na Alemanha, que agora já está reformado. Obviamente recordo, em tempos mais recentes, um dos meus mentores, e que era um PCO [Professional Congress Organiser] belga, que continua envolvido no negócio, Werner Van Cleemputte. Recordo também pessoas de várias esferas do setor do turismo, com quem privei de muito perto, pessoas que tiveram responsabilidades políticas, a nível autárquico, no Porto, em Lisboa. Ao longo da vida tive vários gurus e pessoas com quem tive a oportunidade de aprender e que me inspiraram.

A experiência no Porto Convention Bureau ajudou a ter uma visão mais global do setor do turismo de negócios?

Sem dúvida. O Convention Bureau foi provavelmente uma das experiências e uma das fases do meu processo, da minha evolução na carreira, que me deram a noção clara de que os processos colaborativos e competitivos são provavelmente a fórmula mais inteligente e a mais adequada para conseguirmos criar um ecossistema verdadeiramente sustentável. Diria que o que aconteceu há 25 anos com a criação e a fundação do Convention Bureau, a experiência desse período confirma aquilo que hoje em dia estamos a viver, uma perspetiva no fundo diferente, mas que tem muitas coisas em comum. E a noção de que para conseguirmos ir mais longe, de facto, temos de ser capazes de caminhar em conjunto. Se isso era verdade há 25 anos, hoje é ainda mais verdade.

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Trocar a segurança pela independência

Seguiu‑se a essa experiência no Convention Bureau, a constituição de um PCO próprio, a The House of Events (THE). Quais foram as vantagens e desvantagens de seguir um caminho próprio?

É curioso que faça essa pergunta, porque tenho estado a refazer o nosso sítio na internet, e tenho estado a fazer uma espécie de ‘revival’, uma espécie de ‘rewind’ daquilo que foram estes últimos 20 anos. Curiosamente esses ‘gains and pains’, essas dores e esses ganhos, vieram todos de volta. E tenho‑os muito presentes na minha memória. No fundo, aquilo que sei hoje é que temos vivido ao longo destas últimas décadas períodos de grande desenvolvimento e de grande crescimento e períodos de grande crise económica e social, e, portanto, isso faz parte da nossa história e é algo que temos de aceitar, não apenas como normal, mas como parte desse ciclo permanente que no fundo é a própria vida. Processos sucessivos de renascimento, de revitalização, de regeneração e obviamente também de algumas perdas pelo caminho. Durante muitos anos tive essa perceção de que poderíamos controlar tudo à nossa volta. E isso não é a realidade. Há de facto muito poucas coisas que podemos controlar, e aquelas que podemos controlar, devemos de facto dedicar‑nos a elas de uma forma plena e, ao mesmo tempo, sermos capazes de perceber que não vale muitas vezes a pena o esforço para tentar controlar aquilo que não é controlável.

Mas foi um esforço de controlo da sua vida a razão de criar a THE?

No fundo, fiz aquilo que muita gente fez, que foi trocar a segurança pela independência. Acho que é um trade‑off que muita gente faz numa fase da vida. É chegar a um ponto em que achamos que temos condições para trocar uma certa segurança, uma certa estabilidade, pela independência, pela autonomia, pelo desafio e pela vontade de correr riscos. É uma troca em que abdico de alguma coisa e acho que posso ganhar outra. E essa outra tem a ver com uma maior liberdade de poder pôr em prática ideias, poder desenvolver projetos. No fundo, é um pouco a ideia da superação. É a mesma ideia que move as pessoas a subir o Evereste ou a fazer a travessia do Atlântico. É uma ideia de superação. A ideia de que quando criamos um desafio conseguimos tirar o melhor de nós próprios. Obviamente tem os seus riscos e tem as suas dores, e nem sempre dá certo.

O seu estilo de liderança foi mudando ao longo dos anos?

Foi. Durante muitos anos, sobretudo em cadeias internacionais e empresas de grande dimensão, o espírito era necessariamente muito controlador, muito hierarquizado. Estou a reportar‑me aos anos em que estive em chefia de departamentos de hotéis. O facto de ter tido também uma experiência como responsável pelo departamento de formação e de gestão de recursos humanos durante um período fez‑me abrir horizontes e, sobretudo, perceber a importância da nossa capacidade de diálogo com os colaboradores e da perspetiva de que as relações não podem ser meramente hierarquizadas e feitas segundo um princípio de poder. Isso não faz sentido.

É preciso, de facto, criar um ambiente muito mais democrático, muito mais aberto, para conseguir tirar o melhor das pessoas. Ao longo dos anos aprendi a delegar e a ter maior confiança nas pessoas. O espírito ao longo do tempo foi evoluindo nesse sentido. É evidente que há coisas na nossa personalidade que demoram anos a mudar e não tenho a menor dúvida de que, apesar de tudo, hoje em dia ainda tenho alguma coisa desse espírito controlador, mas claramente tenho uma relação muito mais próxima, que não deixa de ser uma relação exigente, menos controladora, mais de responsabilidade e de delegação.

Mas há outra coisa no nosso trabalho que acaba por ser sempre inevitável, nós dependemos muito da relação que temos com os nossos parceiros e somos inevitavelmente forçados a ter uma grande necessidade de acompanhamento, de controlo. Numa atividade em que dependemos quase exclusivamente de terceiros, a definição de um plano, de um programa, de tarefas, de prazos, é fundamental, mas depois tem que haver a coordenação, o acompanhamento e o controlo. O controlo é uma das ferramentas de gestão e sem isso as coisas podem, de facto, correr mal.

Agrada‑lhe formar pessoas na empresa? Ou gosta de trabalhar com pessoas com alguma experiência?

Eu diria que, mais do que nunca, e isto é uma call to action e é uma chamada de despertar, nós temos de dedicar muito mais atenção ao capítulo da formação e do envolvimento, não apenas dos colaboradores, mas também dos nossos parceiros. Aquilo que permite que um projeto se possa executar com sucesso, com o mínimo de risco e de surpresas, é claramente um processo em que vamos progressivamente envolvendo as pessoas, em que lhes damos conta da importância que cada uma delas tem no papel que desempenha para o projeto, criando uma visão daquilo que é o objetivo, daquilo que se espera, como um todo, e aquilo que em particular lhes diz respeito, mas que tem muito a ver com a sucessiva capacidade de ir criando metas e patamares. Funciono muito por patamares. Mas é um processo de envolvimento e é um processo de liderança por definição de objetivo, por missão.

Não sou uma pessoa fácil, não é fácil trabalhar comigo, tenho dias em que sou verdadeiramente complicado. Tive, ao longo destes anos, a possibilidade de trabalhar com pessoas e de ter desenvolvido projetos com pessoas que, quase todas, tiveram carreiras brilhantes na hotelaria e em diferentes setores. Mas diria que o mérito é delas, não é meu. Reencontro às vezes pessoas ao fim de anos e sinto que deixei ali uma marca que foi positiva, que lhes deixou ficar um drive, uma vontade de superação, uma vontade de fazer. Sobretudo, acho que há uma coisa muito importante que tem sido comum a quase todas elas, quando falam comigo ao longo de anos, que é a ideia de não ter medo. Talvez seja essa a principal característica da minha relação com as pessoas, a de lhes transmitir a ideia de que não há realmente muita coisa que nos faça ter medo. Não vale a pena ter medo, o medo é apenas um sentimento que nos adormece, que nos limita, e acho que parte desse sentimento tem muito a ver com algum atrevimento e essa capacidade de ser capaz de olhar para as coisas e dizer que não há, à partida, nada que me impeça de conseguir concretizar este objetivo. Acho que isso é muito importante, essa perda do medo. Sofremos mais em imaginação do que na realidade. Esta frase não é minha, mas obviamente tem muito a ver com aquilo que sinto. Nós sofremos muito mais por antecipação e na imaginação do que na realidade. E isso limita‑nos imenso. Neste período de Covid e pós‑Covid, acho que essa necessidade de ultrapassar esse medo vai ser mesmo muito importante.

A pandemia veio alterar a visão que tinha para o futuro da empresa?

Veio, inevitavelmente. A pandemia veio por em causa a sustentabilidade do projeto. Nós estamos a trabalhar normalmente, regressamos à atividade em julho, num esquema perfeitamente normal, concretizamos e ainda temos até ao final do ano mais alguns projetos pequenos para realizar. Mas, inevitavelmente, o que está em causa, e o que está em cima da mesa hoje, é a sustentabilidade do próprio projeto. É evidente que não prevejo que possamos ter problemas naquilo que eu chamo o curto prazo, em 2021, mas preocupa‑me o que vai acontecer depois de 2021. Preocupa‑me seriamente.

És confrontado com uma situação destas, em que aparentemente não há soluções, e parece não haver soluções, o telefone não toca, não cai um pedido, não há uma consulta, mas nós estamos a trabalhar como se daqui a 15 dias o mundo inteiro acordasse, e o telefone, os e‑mails, tudo voltasse ao normal. Estamos a preparar‑nos para fazer um trabalho de reaprendizagem, de regeneração, de renovação, a rever todos os processos e sistemas de negócio, a nossa forma de voltarmos a comunicar e as novas ferramentas que vamos poder ter para comunicar, e aquilo que podemos trazer de novo em termos de formatos de meetings, de novas formas de poder gerar valor acrescentado para os clientes. Parar para repensar todo o modelo de negócio. Para que isso seja verdade é preciso que o negócio volte, e essa é a principal preocupação.

Mas enquanto o negócio não volta, acho que este era o momento preciso para voltarmos a reatar os programas de colaboração competitiva. É fundamental que isso aconteça.

E a criação de projetos próprios pode fazer parte dessa equação?

A ideia de projetos próprios é uma coisa que nós gostaríamos de desenvolver e é um risco que eu gostaria de correr num projeto que nos apaixonasse. Acho que essa pode ser uma das fórmulas. Ou seja, não esperar que o mercado nos peça para executarmos um determinado projeto, mas sermos nós próprios a criarmos esse projeto. Acho que isso podia ser uma realidade já para 2021.

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“Small is beautiful”

Num quadro mais amplo, qual poderá ser o papel do PCO nesta nova realidade em que vivemos? É ainda possível conquistar grandes congressos internacionais?

O que aconteceu no mercado dos grandes congressos e eventos é muito semelhante ao que aconteceu noutras áreas de negócio, na banca, nos seguros, na indústria farmacêutica, na indústria automóvel, ou seja, a tendência para a concentração. Essa tendência para a concentração é uma coisa contra a qual sou um verdadeiro guerrilheiro intelectual. Tudo o que eu puder fazer para combater e boicotar a concentração de negócio, de uma forma obviamente ética, farei. Porque isso é a destruição dos nossos ecossistemas. ‘Small is beautiful’ é algo que faz mais sentido do que nunca. E o conceito já vem desde 1972. Acho que esta pandemia eventualmente também vai abanar algumas dessas megaestruturas, e acho que, sinceramente, algumas delas deviam mesmo ruir. Porque elas não são boas, elas não trazem muito de novo para o ecossistema sustentável. Nós vivemos e convivemos muito melhor em ecossistemas com grande diversidade e onde apenas precisamos de ter o quanto baste para sermos felizes e nos sentirmos realmente bem com aquilo que fazemos.

Cada vez mais no futuro tem que haver um sentido de propósito no nosso trabalho. Nós não podemos continuar a funcionar apenas com o objetivo do lucro, do rendimento e do acumular de riqueza. Não faz sentido. Que sentido é que faz eu andar a acumular riqueza durante 20 anos e depois ao fim de 20 ou 30 anos transformar‑me num bom samaritano ou num mecenas? Se andei a tirar durante 30 anos, porque esperei 30 anos para dar? Não, nós temos que ser capazes de o fazer no dia a dia. Agora, há aqui uma questão: para poder ter o frigorífico cheio, é preciso ir mantendo o frigorífico. Penso que a ideia de um mercado que protege as comunidades, que estimula a diversidade, que promove redes locais, que partilha boas práticas e que envolve comunidades mais próximas, é claramente cada vez mais o futuro. Se nós pudermos, obviamente, criar esforços coletivos para sermos capazes de competir com essas megaorganizações e essa enorme concentração de negócio, nós devemos fazê‑lo. Para a própria sustentabilidade do setor do turismo de negócios. Acho que isso é mesmo muito importante.

E como vê neste momento o futuro dos PCOs portugueses?

Sou o mais pequenino entre os meus pares. A noção que tenho é de que a maioria dos PCOs tem efetivamente sido capazes de se reinventar e de se adaptar a esta nova realidade. Quase todos aqueles que eu considero referências, pares inspiradores, têm feito um trabalho absolutamente fantástico. Nós temos uma matéria‑prima, uma quantidade de empresas nesta área que é efetivamente muito rica em termos de resiliência, de capacidade de combate à adversidade. Agora, é evidente que estamos todos muito dependentes da resposta dos mercados. Um grande problema é o receio que os clientes têm de avançar com os projetos.

Os clientes são os primeiros a ter o receio de avançar com os projetos. Não é fácil para o presidente de uma sociedade ou para o presidente de um congresso ou de um evento tomar a iniciativa de avançar com a sua realização mesmo em formato híbrido, sabendo o que pode estar em causa.

Acho que já há, neste momento, matéria suficiente, a começar pelo nosso próprio congresso [Congresso Nacional de Medicina Interna], o primeiro congresso que realizamos desde a pandemia, que no fundo comprova que a implementação de um conjunto de boas práticas, de normas e de regras que permitem que se volte um pouco à nossa vida normal. E nós possamos optar por manter o presencial para aquilo que é importante.

Há pessoas que não conseguem viver sem o presencial, para elas o digital não é uma solução, não se sentem motivadas, não são capazes de se sentirem focalizadas durante uma conferência e ter uma aprendizagem realmente importante. As três grandes características da participação em eventos são, basicamente, aprender, trabalhar em rede, criar motivação para voltar ao nosso trabalho e pôr em prática aquilo que fomos capazes de aprender. E para algumas pessoas o digital não é suficientemente enriquecedor. Se pudéssemos ter o presencial para umas coisas, digital para outras, ótimo. Para novas mentalidades e para espíritos talvez mais jovens, o 100% virtual é claramente uma opção.

O mercado vai então fazer‑se dessas três componentes... E os PCOs estarão preparados para essa transição mais para o digital?

Tecnologicamente, acho que estamos. Em termos de formação, acho que temos ainda um caminho longo a percorrer. Acho que há todo um conjunto de ferramentas que já estavam disponíveis e que continuam a estar disponíveis nesta área, onde nós teremos que fazer uma espécie de reaprendizagem, desde as ferramentas humanas e de interação, da nossa capacidade de criar maior interação entre todos os participantes; na utilização de ferramentas que não são apenas de natureza tecnológica, mas que são muito importantes para criar esses laços e esse relacionamento entre as pessoas para podermos criar programas de comunicação antes, durante e depois.

Recordo algumas das técnicas, das ferramentas de que o Maarten Vanneste falava no livro Meeting Architecture. Ele fala dessa capacidade de envolvermos componentes de natureza artística, o envolvimento de facilitadores, e pessoas que dinamizam as conversas. Nós precisamos de mudar muitos dos formatos tradicionais nestes meetings. A ideia de um conferencista, um keynote speaker para mil pessoas, faz cada vez menos sentido, as pessoas querem trabalhar muito mais em breakouts, querem ter muito mais a capacidade de interagir e serem parte do próprio programa. Já há inclusive formatos de meetings onde não há agenda, entra‑se no espaço e a agenda é definida pelos participantes. Os formatos como o World Cafe podem ser muito interessantes. Obviamente que as ferramentas tecnológicas que existem hoje em dia só fazem sentido se elas forem integradas desde o início no desenvolvimento conceptual do próprio programa, porque não adianta apenas ter uma app disponível. É absolutamente inevitável e necessário que se envolvam os organizadores, os mentores, e os participantes em todo esse processo e se criem, efetivamente, os estímulos para que as pessoas possam interagir e dar o seu contributo e o seu melhor. Acho que aí há um espectro enorme de aprendizagem, que tem muito a ver com conteúdos que nós precisamos de trazer tanto para o presencial, como para o digital.

E este é o momento para os trazer? 

Acho que esta é uma altura boa para nós pararmos e percebermos a importância destas ferramentas. Se tivesse uma mensagem para o mercado, para os nossos pares, é que nós precisamos de dizer aos clientes que temos um conjunto de serviços de valor acrescentado, que são feitos sempre na perspetiva já não apenas do cliente e do participante, mas de uma perspetiva até mais global. Eu diria quase que um sistema. Nós, no fundo, em termos de evolução, partimos do patamar client‑centric, centrado no cliente, portanto, para um novo patamar que acho que é system‑centric, centrado no próprio sistema. Já não é apenas o participante, temos de ver o todo. O melhor para toda a gente, o melhor para os patrocinadores, o melhor para os participantes, o melhor para os fornecedores, o melhor para toda a gente, é isso que faz sentido.

E acha que neste momento estamos mais disponíveis para partilhar informação e colaborar uns com os outros?

Muito mais. Tudo o que nós pudermos fazer nesse sentido, acho que é bem‑vindo. Se isso alguma vez foi verdade, é mais verdade do que nunca. Nós somos aquilo que partilhamos. Não tenho a menor sombra de dúvida sobre isso. Sempre foi um pouco assim, mas hoje, mais do que nunca, partilho tudo aquilo que nós temos feito, as boas práticas, os documentos, os dossiês. Acho que isso é muito importante para podermos acrescentar valor ao setor. E criar esse mindset de grande tranquilidade e de capacidade de resolver.

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“O futuro não é aquilo que nos acontece, é a forma como respondemos àquilo que nos acontece”

O que gostava que ficasse de mais relevante no mercado depois de ultrapassada esta fase tão complicada?

Acho que a questão de nós idealizarmos que modelo de desenvolvimento queremos para as nossas comunidades, para as empresas, para as nossas tribos, e para cada um de nós em particular. Que modelo de desenvolvimento sustentável é que nós queremos no futuro, diria que é provavelmente aquilo que eu acho mais importante. Ou seja, se nós sairmos desta pandemia sem ter aprendido e apreendido algo de novo, e sem questionarmos algumas daquelas velhas falácias, então acho que não traz assim nada de novo. Acho que é sobretudo isto, este sentido de propósito no trabalho, no negócio, esta nossa capacidade de estarmos mais presentes, sermos também mais ousados, mais curiosos, mais solidários, de podermos partilhar as coisas, acho que isto é muito importante. O futuro não é aquilo que nos acontece, é a forma como respondemos àquilo que nos acontece.

A indústria está a passar por um momento muito complicado. Há quem diga que é um setor esquecido ou invisível. Como podemos afirmar a importância e o valor da indústria dos eventos, sobretudo entre aqueles que têm capacidade de decisão, responsabilidades políticas e de estratégia?

Essa é a ‘one million dollar question’. Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. O problema é que são muitas bocas, somos nós da indústria dos eventos, é a indústria hoteleira, é a animação, são os artistas, é toda a gente neste momento e toda a gente reclama a atenção para o seu trabalho. Acho que a única maneira de nós resolvermos isto é sermos capazes de nós próprios irmos encontrando as soluções e de ir reclamando ao nível da governance uma atenção para as soluções que estamos a desenvolver.

Acho que temos de passar de um foco de atenção para um foco de intenção. A melhor maneira de resolvermos isto é pelo exemplo. O exemplo é uma resposta coletiva e que no fundo envolve chamadas de atenção para uma maior democratização dos sistemas. É evidente que temos de apontar o que não está bem e reclamar atualização e mudança naquilo que efetivamente não é correto, não é sensato ou não é aceitável. Acho que isso temos todo o direito de o fazer, exigir uma maior democratização a nível de governance. Mas para isso acontecer temos de ser muito mais participativos. Temos de ser nós próprios a sermos capazes, através das associações, de exemplos e de trabalho a demonstrar que isso é possível. E obviamente que a proximidade que temos dos centros de decisão permite‑nos ter esse nível de exigência.

Sente alguma falta de definição do setor? Quando falamos de eventos falamos de muita coisa. Justifica‑se um unir de forças de todo este setor? Ou as características tão diferentemente vincadas justificam essa separação?

Aquilo que tenho vindo a aprender com alguns dos meus gurus nesta área da tecnologia social é que vivemos em sociedades em que alguns dos sistemas estão obsoletos ou não funcionam, mesmo em colapso. A grande questão aqui é o que nós podemos fazer para melhorar este estado de coisas. Tudo o que fizermos, quer ao nível de comunidades, de grupos que têm perspetivas comuns, quer a nível mais abrangente, tudo o que fizermos será sempre necessariamente pouco. Os efeitos do lobbying, o que é que isso poderia significar? Poderia significar que, ao nível das diferentes associações ou dos grupos que representam interesses de diferentes comunidades ou de diferentes tribos, é possível ir conseguindo recolher inputs que pudessem ser apresentados de uma forma integrada e levar até aos organismos da tutela, de governance, que são também eles próprios vários, porque isto envolve imensos ministérios e várias áreas: economia, saúde, educação. O problema do nosso lado tem espelho do lado do governance. É a mesma coisa do lado de lá. Não é só um ministério que vai resolver isto, são vários. Aqui a única coisa que podemos fazer é melhorar a comunicação e se calhar criar círculos onde isto possa ser trabalhado. Os PCOs têm de estar juntos e ser capazes de partilhar isso, as organizações e associações que envolvem o setor da organização dos eventos também, e assim sucessivamente. Uma associação representativa de todo o setor não existe. A APECATE é representativa de uma parte, mas não é representativa de todo o setor.

Extrapolando para a perspetiva dos clientes, há espaço nesta altura para investirem mais nesta componente dos eventos?

Acho que temos casos de excelência que são, não apenas inspiradores, mas que têm cumprido muito bem o papel de líderes e a liderança é uma coisa contagiosa, líderes formam líderes. Acho que têm evoluído bastante. Não sou eu que o digo, são comentários de clientes. Numa conversa circunstancial com o CEO da Vok Dams, ele disse “trabalhar em Portugal é fácil”, ou seja, isto vindo de um CEO de uma empresa como a Vok Dams, que ainda por cima é alemã, é um elogio notável. É evidente que podemos fazer ainda melhor e esse é provavelmente o desafio que temos, que é dizermos aos mercados que estamos de volta e ainda melhor e ainda mais bem preparados. Acho que essa é a mensagem.

Acha que as associações médicas, as ligadas à engenharia, etc., que podem evoluir, podem‑se profissionalizar e abrir novas oportunidades aos organizadores de congressos?

Claro que sim. Esse é um trabalho nobre, que nos cabe a todos, que cabe também muito às associações setoriais e às associações de turismo. Já temos ótimos exemplos de pessoas que têm feito um trabalho absolutamente notável como embaixadores, capazes de trazer para Portugal um sem número de eventos. Não é sem razão que aparecemos no ranking da ICCA na posição em que estamos. Se formos analisar ao detalhe a quantidade de eventos que são fruto do trabalho da academia, da comunidade científica, é obviamente elevado. Não tenho a perceção de que tenhamos alguma razão de queixa nesse sentido. É evidente que nos cabe a nós, se calhar, PCOs, a responsabilidade de poder animar ainda mais e dar ferramentas a essas comunidades.

 

Cláudia Coutinho de Sousa