Festivais, rituais e ritos

Opinião

22-05-2024

# tags: Festivais , Eventos

Festivais como rituais. Mergulho nas suas nuances simbólicas e sociais, na interseção entre tempo, espaço e significado.

Os festivais são constituídos por atos rituais, ritos, dado que acontecem num quadro excecional de tempo e espaço, e o seu significado é considerado como indo além de aspetos literais e explícitos, sendo exemplos destes o ritual de enquadramento (ou rito de abertura, valorização, sacralização; que modifica a função usual e o significado de tempo e espaço, que introduz o conceito de “tempo fora do tempo” – uma dimensão temporal espacial devotada a atividades especiais), os ritos de purificação ou salvaguarda, os ritos de passagem, os ritos de reversão, os ritos de exibição conspícua, os ritos de consumo conspícuo, os rituais drama, os rituais de mudança, os ritos de competição, e os ritos de desvalorização, apesar de que eventos da vida real não irão apresentar todos os rituais componentes listados.

Ritual (sagrado) e festival (secular) são distintos. Têm características distintivas e opostos significados simbólicos, apesar de ambos ocorrerem em momentos altamente carregados na vida da comunidade.

O ritual surge de apreensões compartilhadas em face de mudanças individuais e sociais; concebido para lidar com elas, dá nomes e limites às transições e transformações; sublinha a continuidade e a confirmação; reforça a harmonia da sociedade e intensifica a autoridade; é de verdade – uma ocasião cujas transformações e consequências afetam a vida quotidiana; reencena, até certo ponto, a forma como o mundo natural e social são juntos; leva a energia já acumulada no tecido social e reforça-a regularmente. Os rituais são processos que “curam” uma sociedade ao redor de momentos de “crise de vida”.

Já o festival vai contra a confirmação costumeira e a pacificação, com desordem subversiva e justaposição dramática; questiona a autoridade e desafia a harmonia social; é por diversão – não deve ser levado a sério: as suas consequências só devem afetar o mundo de faz de conta; toma o seu significado precisamente da oposição ao quotidiano e à jorna de trabalho, que representa com a inversão simbólica e o capricho num jogo de espelhos que distorcem; fornece a sua própria energia explosiva e rasga-a em pedaços periodicamente.

No entanto, festivais e ritos ainda parecem fazer parte do mesmo impulso humano para intensificar o tempo e o espaço, e para revelar mistérios. Enquanto os rituais, por si só, estão envolvidos no desenvolvimento do nosso sentido individual da autoridade, ambos os rituais e festivais entram no processo de autoautenticação.

Nos rituais, as transformações colocadas em prática são responsáveis por manter o fluxo da vida, enquanto os festivais, geralmente, operam de uma maneira que confronta e agrega normas culturais, portanto, opera de maneira antagónica à confirmação ritual habitual.

No ritual, o trabalho dos deuses está realmente a ser realizado, na medida em que as transformações pessoais e sociais são possíveis, sendo reencenadas de acordo com o exemplo dos deuses, com motivos de propósito sério, o formal e o cerimonial, ou seja, altamente sequenciado, surgindo em pontos de transição, mesmo em face de uma crise. Ao contrário dos festivais que surgem em áreas abertas da vida, os rituais emergem em zonas impactadas.

“[Nos] festivais, as transformações são por diversão, para serem mantidas apenas dentro do mundo especial. Com os rituais, as transformações, se ocorrerem, são levadas para o quotidiano. Assim, o poder do artista transformador é bastante diferente nos dois, pois no ritual o papel tende a ser a intensificação (ou talvez a reautorização) de um papel quotidiano, enquanto no festival, as figuras transformadoras tendem a ser palhaços ou mágicos, intérpretes que não devem ser levados a sério.” (Abrahams, 1987, p.179)

Os festivais devem fornecer a sua própria fonte de energia das seguintes formas: através de confrontação forçada; por dramatização, envolvendo mascarar-se ou vestir-se de trapos; fazendo muito ruído incomum e movimento em grande escala, incluindo canto e dança; engenhando argumentos e desenvolvendo concursos acentuados e noções de tomada de riscos; e invocando o espírito do absurdo e da inversão.

Três fases são distinguidas num rito de passagem: separação, transição e inclusão. A primeira fase é a separação, a fase que claramente demarca o espaço e o tempo sagrado do espaço e do tempo profano ou secular. Deve ser, além disso, um rito que também modifica a qualidade do tempo, ou constrói um reino cultural que é definido como “fora do tempo”, isto é, além ou fora do tempo que mede processos e rotinas seculares. Inclui o comportamento simbólico – especialmente símbolos de reversão ou inversão de coisas, relações e processos seculares – que representa o distanciamento dos sujeitos rituais (noviços, candidatos, neófitos ou “iniciados”) dos seus estatutos sociais anteriores.

Durante a fase interveniente da transição, ‘margin’ ou ‘limen’ (significando "limiar" em latim), os sujeitos rituais passam por um período e área de ambiguidade, uma espécie de limbo social que tem poucos (embora alguns deles sejam mais cruciais) dos atributos dos estatutos sociais profanos, ou dos estados culturais, anteriores ou subsequentes.

A terceira fase, de ‘reagregação’ ou ‘incorporação’, inclui fenómenos simbólicos e ações que representam o retorno dos sujeitos à sua nova, relativamente estável e bem definida posição na sociedade total.

Uma qualidade de “fluxo” cultural é associada aos rituais pré-revolução industrial, tendo posteriormente dado lugar ao individualismo e racionalismo que empurrou a experiência de fluxo para a arte, desporto e jogos, entre outros.

Há também abordagens antropológicas que codificam o ritual como um aspeto do teatro. Performances teatrais e dança são muitas vezes conectadas a um dado evento e são particularmente úteis para ensinar valores religiosos, históricos e morais às pessoas. Quanto às tradições religiosas e espirituais ocidentais, forças protetoras e curativas podem ser evocadas através do teatro e da dança nos eventos do festival e também são usadas para confirmar e reconhecer a existência de um lugar intangível entre este e outros mundos.

A cultura dos festivais deve ser vista sob uma luz contextual, onde até mesmo os recetores invisíveis e os artistas espirituais são levados a sério. A transformação pode ser auxiliada por cerimónias cuidadosamente projetadas que orquestram os três estágios da passagem ritual. As comunidades inteiras podem conspirar para a transformação através da celebração pública, tal como era entendido pelas civilizações antigas, em ressonância com as forças cósmicas e naturais.

 

Por João Carvalho, Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos (Beach Break®).

 

Bibliografia:

ABRAHAMS, Roger D. (1987) “An American Vocabulary of Celebrations”, In Alessandro Falassi (ed.) Time out of Time: Essays on the Festival, Albuquerque: University of New Mexico Press, pp.173-183.

ADDO, Ping-Ann (2009) “Anthropology, Festival, and Spectacle”, Reviews in Anthropology, 38:3, pp.217-236.

FALASSI, Alessandro (1987) “Festival: Definition and Morphology”, In Time out of Time: Essays on the Festival, Albuquerque: University of New Mexico Press, pp.1-10.

HASTINGS, Kathy A. (2015) Communitas, Civitas, Humanitas: The Art of Creating Authentic Sense of Community and Spirit of Place, Tese de Doutoramento: Holos University.

NYGREN, Christina (2007) “Festivals in Religious or Spiritual Contexts: Examples from Japan, China, India and Bangladesh”, In Hauptfleisch, Temple et al. (eds.) Festivalising! Theatrical Events, Politics and Culture, Amesterdão – Nova Iorque: Rodopi, pp.261-280.

TURNER, Victor (1974) Liminal to Liminoid, in Play, Flow, and Ritual: an Essay in Comparative Symbology, Rice Institute Pamphlet-Rice University Studies, 60:3, pp.53-92.