Roteiro: Em busca do imaginário de Miguel Torga

Reportagem

07-03-2022

# tags: Sabrosa , Destinos

Um roteiro transmontano e duriense para descobrir as paisagens físicas e humanas que inspiraram Miguel Torga e a sua obra literária.

Miguel Torga, ou Adolfo Correia Rocha, nasceu na aldeia de São Martinho de Anta, no concelho de Sabrosa, corria o ano de 1907. É aqui, nesta pacata aldeia transmontana, que se inicia a nossa viagem ao “Reino Maravilhoso” de Torga. Mas nada melhor do que começar o nosso périplo com algum contexto. No Espaço criado para homenagear o autor, é possível conhecer mais em detalhe a sua vida e obra, através de uma exposição fotográfica que releva os momentos mais marcantes da biografia do escritor. Trata-se de um espaço amplo, projectado pelo arquiteto Eduardo Souto Moura, que também é usado para atividades de divulgação do património da região e como polo de dinamização cultural e de criação artística. Pode contactar o Espaço Miguel Torga para organizar a sua visita orientada, seja individualmente, seja em grupo. João Luís Sequeira, diretor do Espaço, admite que muitos visitantes vêm no encalço do universo de Torga, mas também há os entusiastas da arquitectura, que procuram ver o edifício de Eduardo Souto Moura. As visitas, para já, são exclusivamente em português.

Agarez!… O apego das raízes ao chão nativo! Depois de tantas andanças, de tanto sofrimento, de tanto estudo, o coração umbilical continuava ligado à matriz. Tinha, realmente, uma paisagem, um meio, um sítio geográfico vital gravado nos cromossomas! O corpo podia correr todos os caminhos do mundo, e o espírito voar em todas as direções. Aonde chegassem, denunciariam sempre a marca da origem, a singularidade inconfundível, espécie de sabor à terra de proveniência, como o dos frutos. 
Miguel Torga, A Criação do Mundo

A pouca distância a pé fica a casa onde nasceu Miguel Torga, e que hoje é também um local de visitação e centro de interpretação. Foi nesta pequena casa que o autor viveu até aos 13 anos, e à qual regressou sempre que possível. Tendo sido doada pela filha à Câmara Municipal de Sabrosa, a casa é agora gerida pelo Espaço Miguel Torga. A entrada e a sala estão conforme Torga as deixou, sendo as restantes divisões tributos ao autor, bem como à sua mulher e filha.

Subia a quelha, atravessava o Eirô sob a copa do negrilho, cumprimentava o Senhor Arnaldo, sempre de plantão nos cobertos, e diante da loja das Pintas, já levava a fralda de fora. (…)
Miguel Torga, A Criação do Mundo

Continuando a pé, chega-se ao largo principal da aldeia, e temos provavelmente uma visão semelhante à que o autor tinha. Os velhos sentados nos bancos do jardim, o restaurante onde comia, sempre na mesma mesa, a farmácia que ajudou a instalar, a copa do negrilho que adorava.

São Martinho de Anta é o início e o fim do ‘Trilho nos Passos de Torga’, um percurso circular que enquadra o visitante no ‘espaço literário’ de Miguel Torga e que passa pelo nosso destino seguinte: a Senhora da Azinheira.

S.Martinho de Anta, 12 de abril de 1965 – Chego – verdadeiramente nem chegar é preciso: basta partir nesta direção -, e pareço o cão de Pavlov: todo eu segrego baba emotiva. O simples nome da povoação, lido nos marcos da estrada, desencadeia dentro de mim uma girândola de reflexos. Vejo a Senhora da Azinheira a branquejar no alto da serra, oiço o sino a badalar, sabe-me a boca a tabafeira, cheira-me a rosmaninho.
Miguel Torga, Diário X

A Capela da Senhora da Azinheira era um dos locais de ‘peregrinação’ obrigatória para Miguel Torga. Deste miradouro natural, a vista da região é absolutamente deslumbrante, sobretudo em dias solarengos. A Câmara Municipal de Sabrosa colocou um baloiço, que tem feito as delícias de quem visita o lugar. Depois de respirar a calma e tranquilidade deste lugar, de fotografar a paisagem de perder de vista e de espreitar a capela do século XVI, rumamos em direção ao Douro.

Nenhum outro caudal nosso corre em leito mais duro, encontra obstáculos mais encarniçados, peleja mais arduamente em todo o caminho. (…)
Miguel Torga, Portugal (Um Reino Maravilhoso - Trás-os-Montes)

Na descida de Sabrosa para o Pinhão, paramos na Aldeia Vinhateira de Provesende. A aldeia é absolutamente encantadora e digna de visita. As várias casas senhoriais e brasonadas, todas elas com histórias que valem a pena conhecer, deixam antever o que este lugar foi no passado: rico e poderoso. Deambular pelas ruas típicas, pela praça da Igreja Matriz e Pelorinho, pela fonte velha, pelo miradouro é mergulhar no universo do vinho do Porto. E sabia que o problema da filoxera (insecto que destrói as videiras) começou a ser resolvido aqui, em Provesende? Tanto que em breve a aldeia receberá um museu dedicado ao tema. E se quiser comer e beber bem, o conselho é que experimente o Papas Zaide… não se vai arrepender.

Mas a própria beleza deve ser entendida. Não é subir os restolhos de Lagoaça, contemplar o abismo, e quedar-se em êxtase. Não é espreitar de S. Salvador do Mundo o Cachão da Valeira, e sentir calafrios. Não é descer de Sabrosa para o Pinhão, estacar em S. Cristóvão, e abrir a boca de espanto. Não é ir a S. Leonardo de Galafura ou ao miradouro de S. Brás, olhar o caleidoscópio, e ficar maravilhado. É compreender toda a significação da tragédia, desde a tentação do cenário, à condenação de Prometeu, ao clamor do coro.
Miguel Torga, Portugal (Um Reino Maravilhoso - Trás-os-Montes)

O destino final da nossa viagem é a Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo. A quinta encapsula todo o imaginário do Douro e do vinho e foi o final perfeito de um dia especial. As vistas dos socalcos, do rio, surpreendem mesmo quem já conhece o Douro de trás para a frente. É facilmente entendível o porquê destas paisagens serem matéria, inspiração e destino da obra literária de Miguel Torga.


* A jornalista viajou a convite da Câmara Municipal de Sabrosa

© Cláudia Coutinho de Sousa Redação