Vale tudo no trabalho voluntário?

03-03-2020

O recurso ao trabalho de voluntários em eventos e congressos já é uma realidade nos últimos anos, sobretudo em certames de grande visibilidade como a Web Summit ou o festival da Eurovisão. Este tipo de trabalho tem um enquadramento legal que é muito claro: só pode ser usado em atividades sem fins lucrativos.

No entanto, o debate sobre o que constitui trabalho voluntário e de que forma se pode evitar que seja usado em situações que deveriam estar a ser asseguradas por funcionários remunerados surge, por vezes, durante a realização de grandes eventos em Portugal. Mas afinal, o que é o trabalho voluntário?

Fins não lucrativos

A lei n.º 71/98 define que “voluntariado é o conjunto de ações de interesse social e comunitário, realizadas de forma desinteressada por pessoas, no âmbito de projetos, programas e outras formas de intervenção ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comunidade desenvolvidos sem fins lucrativos por entidades públicas ou privadas”.

Este diploma estabelece ainda que se consideram organizações promotoras as “entidades públicas da administração central, regional ou local ou outras pessoas coletivas de direito público ou privado, legalmente constituídas, que reúnam condições para integrar voluntários e coordenar o exercício da sua atividade”, sendo que poderão aderir a este regime “outras organizações socialmente reconhecidas que reúnam condições para integrar voluntários e coordenar o exercício da sua atividade”.

As atividades que podem recorrer ao trabalho voluntário devem ter “interesse social e comunitário”, nas áreas cívica; da ação social; da saúde, da educação; da ciência e cultura; da defesa do património e do ambiente; da defesa do consumidor; da cooperação para o desenvolvimento, do emprego e da formação profissional; da reinserção social; da proteção civil; do desenvolvimento da vida associativa e da economia social; da promoção do voluntariado e da solidariedade social, segundo a lei.

Mais tarde, o decreto‑lei nº 389/99 veio regulamentar a aplicação desta legislação, estabelecendo que podem integrar e coordenar voluntários pessoas coletivas de direito público de âmbito nacional, regional ou local, de utilidade pública administrativa, incluindo as instituições particulares de solidariedade social e outras, “desde que o ministério da respetiva tutela considere com interesse as suas atividades e efetivo e relevante o seu funcionamento”.

Para Ana Fernandes, vice‑presidente da APECATE – Associação Portuguesa das Empresas de Congressos, Animação Turística e Eventos, “está estabelecido qual o tipo de iniciativas e de eventos em que se pode recorrer a voluntários. É claro que um voluntário colabora para facilitar e não pode ser entendido como alguém que está a fazer um trabalho que não é remunerado e devia ser”.

A responsável salientou que “do ponto de vista dos direitos, também está consagrado o que se tem de garantir a um voluntário” e que inclui seguro, subsídio de transporte e alimentação, bem como a garantia “de não‑exploração”, ou seja, não pode prestar trabalho que deveria ser remunerado.

Assim, de acordo com a lei, o voluntário tem direito, entre outras coisas a programas de formação, a um cartão de identificação, enquadramento no regime do seguro social voluntário, faltar justificadamente caso esteja empregado, receber indemnizações, subsídios e pensões e outras regalias legalmente definidas, em caso de acidente ou doença contraída no exercício do trabalho voluntário e beneficiar de um regime especial para utilização de transportes públicos.

Ana Fernandes realça que “o trabalho voluntário é muito meritório, sobretudo em projetos em que estão em causa questões sociais de grandes eventos nacionais, mas têm de ser as entidades que podem recorrer a dinamizar o trabalho voluntário. Em projetos com fins lucrativos isso nunca poderá acontecer”. A Fundação da Juventude é uma dessas entidades, que dinamizam e coordenam o trabalho de voluntários a nível nacional. “Trabalhei já com voluntários em eventos a nível nacional e o que fizemos foi envolver o IPDJ [Instituto Português do Desporto e Juventude] que é uma das entidades que pode gerir uma carteira de voluntários e foi aí assegurado o uso de voluntários”, explicou Ana Fernandes.

Para a vice‑presidente da APECATE, “os eventos que recorrem a voluntários têm uma dimensão e desígnio nacional tal que poderão justificar o uso”, sendo que a responsável não tem conhecimento do recurso a voluntários em atividades privadas. “Se o fizerem estão a infringir as regras”, destacou.

“Não me parece que haja genericamente abuso do trabalho voluntário. Mas é importante que o mesmo seja fiscalizado”, garantiu a dirigente associativa.

A Event Point contactou a ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho) e o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social sobre esta questão, mas não obteve respostas em tempo útil acerca de possíveis inspeções realizadas neste setor ou da necessidade de alterar a legislação. A Fundação da Juventude também não forneceu as informações pedidas.

Quem quer ser voluntário?

A realização da Web Summit, em novembro, levantou novamente dúvidas acerca desta questão. Com perto de 2.700 voluntários este ano, segundo os dados divulgados pela organização, o certame oferece o bilhete diário, em troca do trabalho, o que tem sido valorizado por quem quer assistir e, quem sabe, fazer contactos com as empresas e entidades presentes.

Em 2018, a realização do festival da Eurovisão em Portugal, também com recurso a perto de 300 voluntários, foi mal vista pelos sindicatos CENA‑STE e STT ‑ Sindicato dos Trabalhadores das Telecomunicações e Comunicações Audiovisuais, que acusaram a RTP de promover “más e antiquadas práticas laborais”, segundo um comunicado, citado pela agência Lusa. O PS, por sua vez, deu conta de “sérias dúvidas” acerca do trabalho recrutado para este evento.

Em sentido contrário e mais recentemente, durante a Web Summit, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse: “Eu, se tivesse idade para ser voluntário, era voluntário. Eu adorava ter sido voluntário num acontecimento mundial, estar de perto a ouvir grandes oradores mundiais, se eu tivesse 20 e tal anos, universitário, recém‑formado, inscrevia‑me como voluntário” e considerou que era uma “oportunidade única”.

O primeiro‑ministro, António Costa, também defendeu o recurso a estes voluntários no evento de Paddy Cosgrave. “Muitos dos voluntários estão cá para viver por dentro essa experiência. Há 21 anos foi a Expo 98 e houve voluntários. O ministro da Educação foi voluntário e fez‑lhe bem a experiência de voluntariado”, salientou.

Alexandra Noronha