#Sofagate, ou quando o protocolo se torna visível pelas piores razões
13-07-2021
Análise protocolar, por Cristina Fernandes e Susana de Salazar Casanova.
Os factos
A 6 de abril de 2021, em Ancara/Turquia, o Presidente Recep Tayyip Erdoğan recebeu Charles Michel, Presidente do Conselho da União Europeia, e Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia, com o objetivo de debater o futuro das relações entre a União Europeia e a Turquia.
Nesse encontro oficial, os representantes da UE expressaram ao Presidente Erdogan que a UE está pronta para debater uma agenda concreta e positiva, baseada em três pilares: cooperação económica, migração e contactos, mobilidades interpessoais. Igualmente estão em causa diálogos sobre questões de interesse mútuo, como temáticas regionais, saúde pública, clima e combate ao terrorismo. Note‑se que a UE é o maior parceiro comercial da Turquia.
Considerando que o estado de direito e o respeito pelos direitos fundamentais são valores basilares da UE, os seus representantes partilharam com o Presidente Erdogan as profundas preocupações sobre os últimos desenvolvimentos na Turquia a esse respeito, em particular quanto à liberdade de expressão e à segmentação dos partidos políticos e dos media. A promoção dos direitos das mulheres e a retirada da Turquia da Convenção de Istambul suscitam, também, sérias preocupações na Europa.
A questão diplomática e protocolar
Contudo, um incidente ocorrido neste encontro manchou totalmente a agenda de trabalho, tornando‑a invisível aos olhos da opinião pública, provocando um verdadeiro tsunami mediático que, em horas, proliferou nas redes, apelidado como #sofagate e #giveheraseat.
Com efeito, sucedeu que, após o protocolarmente correto acolhimento do Presidente Erdogan à porta do palácio presidencial a ambos os representantes da UE, à chegada à sala, e aquando do momento de as três entidades se sentarem, verifica‑se que só existem duas poltronas na zona principal, uma para o anfitrião e outra, à sua direita, rapidamente ocupada por Charles Michel, enquanto Ursula von der Leyen, visivelmente constrangida e incomodada, se vê obrigada a sentar‑se num sofá lateral (em frente ao Ministro dos Negócios Estrangeiros turco). Objetivamente, a mensagem visual transmitida foi a de que a Presidente da Comissão Europeia fora relegada para um lugar secundário e, claramente, de menor visibilidade e maior distância face ao anfitrião, num momento genérica e universalmente considerado pela opinião pública como humilhante.
A análise protocolar
Do ponto de vista estritamente protocolar, o Conselho da União Europeia (representado por Charles Michel) precede a Comissão Europeia (representada por Ursula von der Leyen), pelo que se poderia considerar, numa visão apenas técnica, estar correta esta distribuição de lugares.
Discordamos, contudo, desta interpretação, por a considerarmos parcial. O Protocolo, além de sistema normativo, consiste numa técnica de ordenação, cujo principal objetivo é, sempre, comunicar e dignificar o poder de instituições e pessoas.
A este propósito, recorde‑se que em inúmeras ocasiões e contextos, aquando da presença dos dois representantes destas instâncias europeias (quer dos atuais quer dos seus antecessores) noutros encontros, ambos eram colocados lado a lado, à direita do anfitrião em questão. O mesmo sucedeu, até, aliás, na Turquia, com os anteriores presidentes de ambas as instituições da UE.
Como acontece neste tipo de circunstâncias, especialistas em Diplomacia, em Relações Internacionais e em Protocolo (e também em “tudologia”…) foram ouvidos e fizeram‑se ouvir na praça pública (sobretudo nas redes sociais) defendendo, com maior ou menor propriedade, tudo e exatamente o seu contrário. Assim, e de imediato, o Presidente turco foi acusado de autocrata e misógino, o Presidente do Conselho da União Europeia de pouco solidário, machista e indelicado e a Presidente da Comissão Europeia considerada vítima perante tanta falta de escrúpulos por parte do seu anfitrião e do seu parceiro.
Concentremo‑nos, porém, no essencial. Mesmo estando as precedências respeitadas, e mesmo tendo em conta que em protocolo o critério de género não é aplicável (e este não é um fator de somenos importância), neste contexto, neste país, com esta agenda, com estas personalidades, esta situação nunca poderia, nem deveria, ter acontecido. Falta de cuidado das equipas de Protocolo das instâncias europeias, má fé por parte do anfitrião, talvez nunca se venha a saber. Porém, aconteceu. E, também em Protocolo, não basta ser, é preciso parecer. Este encontro, além de tudo o mais, do ponto de vista meramente protocolar, é um exemplo perfeito de como tudo não deve suceder.
Assim mesmo, defendemos que o Protocolo foi, é, e continuará a ser fundamental na cena diplomática internacional, enquanto elemento de transmissão de uma imagem de estabilidade do sistema, capaz de limitar eventuais pontos de fricção entre as partes. Neste caso, em Ancara, em abril de 2021, foi oferecida à opinião pública uma imagem nada dignificante: a de uma instituição supranacional, representativa de vinte e sete Estados, cujos dois representantes ali presentes atuam de modo fragmentado, respaldados por um staff pouco sensível, e a de um Presidente de um Estado cujas opções e atuações são verdadeiramente discutíveis sob vários pontos de vista e, também, na sua qualidade de anfitrião.
Aplica‑se, afinal, a muita gasta e velha máxima de que “uma imagem vale mais do que mil palavras”, e nem sempre positivamente.