“Foi uma descoberta permanente”
08-02-2023
# tags: Protocolo , Desporto , Eventos , Qatar
Entrevista a Miguel Macedo, que exerceu a função de protocol officer durante o Mundial do Qatar.
Este foi já o seu sétimo evento internacional. Miguel Macedo soma 22 anos de experiência a nível de eventos e quase uma década em eventos desportivos e internacionais. Ainda assim, descreve como avassalador o impacto e a magnitude de um evento deste género, de onde retirou ensinamentos, consolidou conhecimentos e práticas e ainda descobriu outras culturas. No fundo, foi ter pela frente um “desafio gigante”, com a certeza de se estar preparado para o enfrentar e tirar dele o melhor que se pode “a nível de experiências e de resultados”, explica em entrevista à Event Point.
Que tipo de trabalho realizou no Mundial de Futebol do Qatar?
A minha função era de protocol officer, integrado na equipa de guest operations, fazendo parte da gestão a nível protocolar do acolhimento, do seating e de saídas dos estádios das zonas VIP e VVIP dos convidados FIFA – que iam desde o presidente da FIFA a diversos dirigentes da organização e outros convidados, como antigos jogadores de futebol –, dos estádios Al Bayt e Lusail, os dois maiores do Campeonato do Mundo. Foi um total de 19 jogos, divididos entre os dois estádios, e que abrangeu, entre outros, o jogo de abertura do Mundial, duas meias-finais e a final. Com cerca de 300 lugares na tribuna VVIP, correspondiam-nos cerca de 150 lugares, sendo uma parte do trabalho feito sempre em articulação e apoio com os nossos colegas do comité local de organização. Para além disso, estávamos em contacto com as federações que iam jogar nesses estádios, para apoiar e organizar momentos, como trocas de prendas, acessos aos balneários ou acompanhar convidados especiais em certos momentos.
Pode partilhar connosco como era um dia seu no Qatar?
Os dias passavam pela preparação dos jogos e por diferentes fases. Era fundamental verificar sempre que os lugares das tribunas correspondiam aos planos, para que não fossem atribuídos lugares acima da capacidade. Os marcadores de lugares eram digitais, ou seja, na prática, eram telefones com uma app própria que deveriam estar bem colocados e com as baterias carregadas, onde depois surgia o nome dos convidados – trabalho feito a partir de uma central. Mais perto do jogo, para além de verificar que estavam todos bem em termos de bateria, tínhamos de verificar se os nomes dos ecrãs correspondiam aos nomes e lugares que tínhamos numa outra aplicação visível num ipad e informar eventuais nomes errados. Depois, a equipa dividia-se, numa primeira fase, entre chegadas de convidados, apoio no lounge e seating e, no final, apoio à saída dos nossos convidados, o que significava uma articulação com a equipa de transportes para que os carros e shuttles VIP e VVIP dos convidados estivessem prontos quando fosse necessário.
Como surgiu a oportunidade de trabalhar no evento?
Após um contacto feito em janeiro de 2022 sobre uma possível participação na Taça das Nações Africana, que não se concretizou, voltou a haver um contacto, seguido de algumas entrevistas que acabaram por determinar a minha seleção final. Este já foi o meu sétimo evento internacional.
Como foi a experiência em termos profissionais? E quais foram os maiores ensinamentos profissionais que retirou desta experiência?
Um enorme desafio, claramente. Apesar dos meus 22 anos de experiência a nível de eventos e de outros quase dez anos em eventos desportivos e internacionais, a magnitude e impacto de um Campeonato do Mundo de Futebol é verdadeiramente avassalador. Como sempre, foi um extraordinário processo de aprendizagem, mas também de consolidação de conhecimentos e de práticas profissionais acumuladas. Neste caso específico, o género de evento acabou por colocar todos os seus intervenientes à prova, mas diria: o reforço da perceção que trabalhar a nível internacional exige, cada vez mais, uma enorme capacidade de adaptação a vários níveis; toda a preparação anterior ao evento que podermos fazer será sempre uma mais-valia; e continuar, de alguma forma, a ter de esperar sempre o inesperado nos eventos. Por último, uma boa dose de paciência, de serenidade e de ponderação são ferramentas excelentes para lidar com o dia-a-dia destes eventos tão compactos.
E em termos pessoais? Como se adaptou às diferenças culturais?
Foi o meu primeiro trabalho no Médio Oriente. Por mais que nos possamos preparar a diferentes níveis, nunca sabemos bem o que vamos encontrar. Esse foi, sem dúvida, um grande desafio, mas que se resolveu de forma fácil e gradual, com a noção permanente de que estava a trabalhar numa outra cultura, em imensas áreas muito distinta, com vontade e determinação para criar e melhorar as formas de comunicação todos os dias e com muito respeito por quem nos recebeu. Com o passar das semanas, o que parecia mais difícil tornou-se numa mais fácil e, em muitos casos, excelente convivência, sempre misturada com uma boa dose de curiosidade sobre as diferentes especificidades culturais de cada pessoa. Foi uma descoberta permanente, com uma sensação ótima de que essas diferenças culturais se iam esbatendo até certo ponto dos limites naturais.
Essas diferenças culturais interferiram de alguma forma com o seu trabalho?
Obrigaram-me, sem dúvida, a perceber todo o sistema cultural que me rodeava e que condicionava o trabalho das equipas locais. E assim, dessa forma, tentar adaptar o meu trabalho às exigências que eles me colocavam, procurando soluções para, em conjunto, termos os melhores resultados possíveis. É impossível isso não acontecer em quase todos os lados, mais ainda onde há diferenças culturais tão acentuadas, mas que, sendo o objetivo final comum, tornou sempre mais fácil esses ajustamentos necessários.
Quais os principais desafios? E como foram contornados?
Em primeiro lugar, chegar a um evento praticamente uma semana antes de ele começar e adaptarmo-nos a tudo que o rodeia e às questões específicas que já referi, tendo em conta que, no meu caso, o primeiro jogo foi só e apenas o jogo de abertura do Mundial, ou seja, aquele momento pelo qual tantos trabalharam anos e anos para que tudo pudesse sair da melhor forma possível e com o melhor impacto. Isso exigiu uma adaptação acelerada, que, na realidade, exige mais tempo, mas que teve de ser ajustada de alguma forma. Depois, igualmente no meu caso, após o jogo de abertura, seguiram-se mais 12 jogos consecutivos em dois estádios diferentes: o estádio Al Bayt e o estádio Lusail, com diferentes jogos da fase de grupos. Ou seja, entramos num ciclo de quase três semanas ‘non stop’, com jogos, nalguns casos, às 13 horas locais, que nos obrigavam a ir para o estádio às 6 horas da manhã, por exemplo. Neste caso, uma vez que eram jogos consecutivos, o ritmo tornou-se exigente, até pela diferença horária e pela exigência de permanência de horas no estádio em dia de jogo, que eram semelhantes e muito longas.
O que o motiva num evento desta dimensão?
Quem não se sente motivado para trabalhar num evento de escala mundial e com tanto impacto mediático? Se não percebemos isso antes, percebemos isso ao chegar ao local do evento, pela forma como tudo e todos estão contagiados com o evento. Era óbvio que, nesta fase da minha carreira, este evento ia pôr-me a prova, ia testar muitos dos meus conhecimentos e ia permitir-me descobrir novidades e novas ferramentas de trabalho. Acima de tudo, é confrontarmo-nos com um desafio gigante e sentirmo-nos preparados para o enfrentar e tirar dele o melhor que podemos a nível de experiências e de resultados. A motivação era, por isso, não diria enorme, mas, sim, absolutamente gigante. E não saí, de nenhuma forma, defraudado quanto às expectativas criadas.
O evento foi considerado um sucesso em termos de organização. Quais as razões desse sucesso?
Muito trabalho e empenho na preparação e na adaptação de um evento que tem uma série de características padrão a um conjunto de novas realidades que o país anfitrião exigia. Acho que só quem trabalha em eventos pode ter noção das milhares de viagens, de reuniões online e de assuntos que tiveram de ser discutidos e trabalhados até se chegar ao dia de abertura do evento. E, mesmo assim, estamos a falar de um tipo de evento que, em diversas áreas, vai sofrendo ajustes de melhoramentos ao longo das semanas em que se desenrola. O compromisso da população com o evento era evidente. Via-se nas ruas, nos prédios, as oportunidades que o evento criou para muitas pessoas e o detalhe organizativo que era possível perceber quer nos jogos, quer em Doha no seu dia-a-dia. Nada acontece por acaso; trabalhou-se muito para chegar aos níveis de sucesso que foram referidos. Muitas vezes, quando estamos a trabalhar num evento, estamos numa bolha organizativa e não vemos o lado do espectador. Tive a oportunidade de apenas assistir a um jogo ao vivo, o que atribuiu o 3º e 4º lugares, e no fim do jogo optei pelo metro para regressar. Quando saí do estádio, vi uma imensa multidão e comecei a questionar a confusão que ia ser. Lá está, eu tinha vivido um bocado na bolha organizativa de um setor muito específico, protocolo de tribunas VVIP. Após caminhar um pouco, foi fácil perceber a existência de diversas pessoas com funções de informação onde era a estação de metro ou a zona de ubers e táxis, se assim quisesse. Na zona de acesso ao metro, os acessos estavam incrivelmente definidos por barreiras e com uma gestão de multidões que permitia que tudo se desenrolasse em enorme segurança, sem apertos e confusões, até entrar no próprio metro.
Como é que encara as críticas/polémicas que o Mundial enfrentou? Sentiu isso quando estava lá a trabalhar?
Todos os grandes eventos são alvos de críticas. Ainda hoje o Euro 2004 sofre imensas críticas e, por isso, as críticas não foram um exclusivo deste evento. A nós, profissionais que aceitamos desempenhar funções, compete-nos dar o melhor de nós todos os dias, contribuindo, assim, para o melhor evento possível.
Tem algum momento que vai guardar para sempre na memória e que possa partilhar connosco?
Não consigo desligar dois momentos e transformá-los num só. O meu trabalho permitiu-me fazer um total de 19 jogos, incluindo o jogo de abertura e a final, em estádios diferentes. De um até ao outro realizaram-se 64 jogos… Por um lado, foi possível perceber na cara de toda a gente que tinha chegado o dia da abertura, do início dos grandes eventos: os nervos, a alegria, a tensão, a vontade de fazer tudo bem. Num segundo plano, a final e a sensação de dever cumprido e, ao mesmo tempo, de levar até ao mundo um jogo tão importante, visto por milhões de pessoas em todo o planeta. O momento que guardo é todo ele, uma viagem do primeiro ao último dia.
© Maria João Leite Redação
Jornalista
© Cláudia Coutinho de Sousa Redação
Editora